Logo pela manhã, somos todos surpreendidos com a sua voz, que vem do outro lado da rua:
“Oh menina! Está à espera de alguém dali?
Sente-se aqui um bocado enquanto espera.”
A barbearia lá da rua já é um espaço de convívio. O Sr. Cardoso, homem de seus setenta anos, já não é apenas o barbeiro da rua mas aquele senhor amistoso que deixa os turistas fotografar o seu espaço, com as suas relíquias, entre elas: as suas cadeiras antigas, tão caricatas, seus espelhos, os vários conjuntos de navalhas, porque neste estabelecimento não se usa máquinas e com muito orgulho.
O seu estabelecimento de três metros de largura e dez de comprimento, é a delícia de qualquer pessoa, seja jovem a adulto, e então no que respeita aos turistas, nem se fala. Já há poucos estabelecimentos assim pela cidade.
Na entrada, possui duas cadeiras estrategicamente posicionadas para se poder sentar e ver o tráfico de pessoas que passam na rua e, não só, receber uma ou outra pessoa que se encontre parada na rua e tenha algo para contar, especialmente se lhe já tiver prendido a atenção e pouco souber sobre a mesma. Cadeiras que também servem para descanso para as pessoas mais ofegantes, na rua que é considerada das mais difíceis de subir da cidade.
“As minhas cadeiras contam inúmeras histórias, muitas trágicas outras alegres, outras, coisas que não lembram a ninguém”, refere Sr. Cardoso, com um ar meio misterioso, e acrescenta “nelas, já cortei inúmeros cabelos, ora mais difíceis ora mais fáceis, os mais estranhos e até fiz uns penteados bem modernos“.
O Sr. Cardoso, alegra-se sempre com uma boa história, e sabe a vida de todos os moradores da sua rua desde os tempos mais remotos até aos mais actuais, dos comerciantes, e estabelecimentos que estiveram por ali. O seu está, orgulhosamente, aberto à quarenta e cinco anos “fruto de muitas lutas”, de acordo com seus relatos.
Quando se refere a lutas, relembra muitas das histórias daquela rua, que não são fáceis de digerir, conta-nos:
“O Sr. Aníbal e sua esposa, ali do número 65 do segundo andar, tiveram que deixar a sua casa porque aquele empresário que é dono do hostel, lá de cima, do número 167 comprou o prédio, creio que vai ser para fazer algo idêntico no prédio deles. Tenho pena, eram boa gente, já moravam aí desde antes de eu vir para cá, lá no prédio, já expulsaram todos os habitantes mais antigos, alguns até sobre ameaça! Não entendo, custa-me a entender. Tanto tempo sem quererem saber das casas e das condições em que os inquilinos se encontravam e agora?
Agora olhe, isto está assim! Uns prédios a cair porque os senhorios nunca quiseram saber, outros fechados já num estado sem recuperação, outros, mandam boa gente para outras localizações, pessoas que viveram aí a vida inteira, que nasceram nessas casas tiveram filhos, foram gerações. A mim? Quando me tirarem daqui, será para ir para a reforma ou para o cemitério, não me vejo em casa parado, sem toda esta família daqui da rua, é o que conheço, são os que conheço”.
Sr. Cardoso, conhece toda a gente e, gosta sempre de travar conhecimento com outras, novas. Há sempre assunto na sua conversa. Mas no que respeitava a habitação e pessoas uma pequena indignação tomava sempre conta dele.
“As mudanças no centro da cidade vão começando a ser óbvias, as casas não estão preparadas para as pessoas residir, para isso mandam-nos para fora. Agora casa sim, casa sim, vemos um hostel, um hotel, um alojamento local… Estes novos empresários não se preocupam com as pessoas mas sim em investir e retomar o seu lucro. A senhora Delfina, ali do nº 109 do 4º frente, já pouco se mexia, a sua família eram os residentes da rua. Para onde a vão mandar? Onde é que uma senhora assim, já com os seus, quase noventa anos, vai viver? Não tem dinheiro para um lar, os poucos familiares já cá não vinham, até chego a duvidar se os tinha.
O mundo está de pernas para o ar. No quarteirão ali atrás até puseram fogo a uma residência só para remover os inquilinos de lá! Onde já se viu isto?”
Todas as pessoas que passam pelo estabelecimento do Sr. Cardoso, conhecem bem estas histórias, factuais, reais e dolorosas. Ele continua a ser um homem bem disposto e muito curioso, o que faz com que as pessoas até lhe apareçam no estabelecimento e conquista com a sua simpatia.
Mesmo em frente ao seu estabelecimento Cardoso & Cardoso barba e cabelo, n°69, os serviços são outros, à sua frente, situa-se o ponto de turismo, n°68, ou tourism point, como a placa indica, onde podemos adquirir informação acerca dos novos acontecimentos, monumentos e actividades a fazer na cidade. De uma forma um pouco mais impessoal a rua começa a mudar.
– Irina Marques, texto e fotografia.
Que realidade tão familiar Irina. Por cá é mesmo isso.
A simpatia das nossas gentes vs. evolução rápida do nosso século.
O que é importante? As vidas ou reabilitação urbana? Pena ambas não serem compatíveis não é?
Bem, português. Apesar de q já vivenciei uma cena assim no NE do Brasil, tem muito de Portugal tb.
A sério?
Sim, é uma descrição muito portuguesa (pelo menos, de gentes mais antigas da cidade).
Reblogged this on REBLOGADOR.
A professora, descreveu de uma forma ligeira a triste realidade que passamos no país.
A minha avó passou por uma situação muito identica e foi muito complicado de resolver.
Ela não queria sair de casa, teve lá a minha mãe e, a mãe dela também tinha vivido lá. As recordações todas da vida estavam concentradas ali. Os amigos a viência era toda naquela rua.
Gostei tanto deste texto, criou-me a sensação de estar a ouvir o relato de uma pessoa da rua.
Catarina, professora não, Irina 😉
Sim, infelizmente passa-se muito destas situações por todo nosso pais.
Muito obrigada por passares por cá.
Vou tentar retirar o professora, sei que não gosta de rótulos (erro meu).
Passo sempre nas suas publicações.
Thank God for people like Mr. Cardoso! It is very strange and heartbreaking at times to see Your hometown bought, sold and built over….stories and all. That’s happened greatly where I live. It still is happening. So odd! I guess they will make their stories too. I dunno. And on life marches.This is such a wonderful piece of writing, Irina. You touched my heart deeply. Thank You! Sending HUGE hugs Your way!!! 🤗❤️😊
So much stories to tell, some never reached.
Thank you Katy.
Getting you hug and sending my huggs back.
My pleasure, Irina! ❤️❤️❤️